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Orfeu rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.


Outros, felizes, sejam rouxinóis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha’ gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.


Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
*
Miguel Torga
*

Na semana em que se comemora o centésimo aniversário de Adolfo Rocha aqui deixamos, in nomini Saturni dies, um poema de Miguel Torga. De entre os muitos que se podiam escolher deste poeta escolhi o Orfeu rebelde para assim evocar um texto do professor Carlos Fiolhais, da Faculdade de Ciências de Coimbra, publicado ontem no Público, a propósito do aproveitamento político e das comemorações do centenário do poeta. Um texto a não perder!