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É consensual dizermos que, tal como no passado, hoje vivemos obcecados com o desígnio de proporcionar aos nossos filhos um futuro melhor do que aquele que tivemos. Para isso, dispomo-nos a trabalhar mais horas, procuramos poupar recursos financeiros, mesmo que com esforço, sacrificamos o lazer e, muitas vezes, a nossa própria saúde, em nome de um ideal que parece quase sagrado: o progresso geracional. Queremos que os nossos filhos estudem mais, viajem mais, tenham menos dificuldades, sofram menos. Queremos que tudo isso, incluindo a Escola, seja um verdadeiro Elevador Social, em que a geração seguinte consiga um posicionamento acima da geração que a antecede. Queremos que os nossos descendentes vivam num mundo mais justo, com mais oportunidades, mais conforto, mais dignidade. E nós queremos ser alavanca desse progresso.

Curiosamente, verificamos uma contradição profunda nesta ambição — uma espécie de ironia social que raramente reconhecemos. Ao mesmo tempo que nos sacrificamos para que as gerações seguintes vivam melhor, olhamos com desconfiança, até com certo desprezo, para aqueles que já vivem num patamar de conforto e privilégio que gostaríamos de garantir aos nossos filhos. Olhamos com censura para os adultos e para os jovens que que cresceram rodeados de estabilidade, de acesso à cultura, de oportunidades que muitos não tiveram. Aos filhos de famílias mais abastadas chamamos-lhes “privilegiados”! Como se não tivessem qualquer mérito naquilo que usufruem. ‘Vestem as calças do pai’, como muitas vezes dizemos.

A verdade é que, em muitos casos, o que criticamos neles é exatamente aquilo que desejamos para os nossos. Queremos dar-lhes acesso a boas escolas, a viagens, a segurança emocional e material — mas se alguém já tem isso, achamos que é “demasiado”. Como se o conforto alheio fosse uma ofensa à nossa luta. É um paradoxo moral e cultural profundamente enraizado na mentalidade portuguesa: a inveja disfarçada de virtude crítica.

O problema talvez esteja na forma como entendemos o mérito. Confundimos muitas vezes esforço com sofrimento. Achamos que só quem lutou contra grandes adversidades é digno de respeito. Como se o valor de uma pessoa se medisse pelo número de quedas que sofreu, e não pela forma como vive ou contribui para o mundo. Esquecemo-nos de que o verdadeiro objetivo do progresso é precisamente quebrar o ciclo da luta incessante. Se conseguimos criar condições para que alguém viva melhor, isso não deveria ser motivo de censura, mas de celebração.

O que diz de nós, enquanto sociedade, o facto de querermos que os nossos filhos tenham vidas prósperas, e ao mesmo tempo condenarmos aqueles que já nasceram nesse contexto? No fundo, o que desejamos para os nossos filhos é exatamente o que criticamos nos filhos dos outros: uma vida melhor. Se formos coerentes com os nossos próprios valores, perceberemos que o objetivo não é que ninguém viva pior, mas que todos possam viver mais e melhor — com dignidade, segurança e esperança. Esse é o verdadeiro legado que uma geração pode deixar à seguinte.

Texto publicado no Diário de Coimbra de 14NOV25