Os heróis do Bussaco

Não será fácil para nós, hoje, imaginar a aflição dos nossos antepassados, em 1810 – e antes, em 1807 e 1808 –, perante a informação de que mais de sessenta e cinco mil soldados franceses se deslocavam a caminho da capital do país, saqueando e destruindo tudo o que se lhes deparava pela frente. Sabendo, então, que eles estavam no caminho dos franceses e que o destino dos seus haveres, do pouco que teriam ganho de centenas de anos de feudalismo, estaria, assim à mercê de um invasor. Apesar de viver, ciclicamente, períodos de grande crise e instabilidade, há mais de 150 anos que em Portugal não se travavam guerras ou batalhas.
O pouco que poderemos sugestionar – até porque temos a tranquilidade do conhecimento histórico do nosso lado – é que os nossos antepassados terão tido medo, terão procurado pôr-se a salvo, terão procurado, com dignidade, preservar o que tinham. Ou então não…
Depois da ‘conquista’ de Almeida, em Agosto de 1810, Arthur Wellesley, visconde de Wellington, comandante supremo das forças anglo-lusas, terá dado ordem de evacuação a todas as populações que se encontravam no caminho dos franceses até Lisboa. Quando chegaram a Viseu, por exemplo, em meados de Setembro, os franceses encontraram uma cidade abandonada, desprovida de tudo, e sem os seus nove mil cidadãos residentes.
Os relatos que nos chegam hoje – duzentos anos passados – do comportamento da população face ao avanço dos invasores estarão, certamente, emoldurados pela apologética heróica da versão dos vencedores, mas não há dúvidas, com os registos de que dispomos, de que os portugueses enfrentaram esta dificuldade com coragem e determinação.
Registos de que foram queimadas as sementeiras e os bens alimentares que não poderiam ser evacuados ou escondidos, para que os franceses não se servissem deles. Registos de que só ficaram para trás os animais velhos, terrenos queimados e água envenenada para prejuízo do invasor que, com a criatividade de afamado gastrónomo, acabou por criar iguarias como a chanfana ou a lampantana mortaguense.
Com a coragem de quem destrói o que é seu para que outros disso não se usem, os nossos antepassados, por terras de Mortágua, Anadia e Mealhada, especialmente, deram testemunho heróico de patriotismo e bravura. Ao que tudo tem pouco importa perder parte. Ao que nada tem, a perda de parte é questão de sobrevivência. E muitas pessoas – contados como danos colaterais? – perderam a vida, mesmo não sendo soldados. Muitas terão sido agredidas e violadas, muitas terão sido as sequelas deixadas pelo invasor.
Mais do que Wellington, ou os soldados profissionais, o verdadeiro herói do Bussaco foi o povo português. Um povo feito de homens e mulheres que, não tendo podido fugir para o Brasil, como os dignitários do Estado viveram, na pele, as agruras da invasão.
Esta bravura dos nossos antepassados bem pode, hoje, ser tomada como exemplo e como incentivo à nossa resistência colectiva às dificuldades. Em 26 de Junho de 2010, em Sobral de Monte Agraço, por ocasião das Comemorações dos Duzentos Anos das Linhas de Torres, o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, recorria ao legado dos nossos antepassados para falar dos dias de hoje: “Celebramos, invocando o seu exemplo, a capacidade de resistência e a capacidade de sofrimento dos portugueses. Os esforços e os sacrifícios que fizeram asseguraram a nossa liberdade. Mas também se fundavam na esperança de uma vida melhor. Aqueles que pegaram em armas, aqueles que resistiram acreditaram no futuro enquanto possibilidade, como ultrapassagem das limitações do presente. Tiveram a esperança de que fossem os portugueses a tomar por si as decisões que marcariam o seu destino. Também hoje, como sempre, se espera que sejamos nós próprios a tomar as decisões que se impõem. Diz-se que suportamos mal as contrariedades, sobretudo quando exigem esforço. Importa que, para além da coragem episódica e da urgência, para além da coragem como virtude ocasional, como impulso, tenhamos também a coragem da constância, a capacidade de manter firme e duradouramente uma posição que seja indispensável à construção de um futuro melhor”.
Há duzentos anos, os nossos antepassados eram camponeses que humilharam os exércitos da maior potência militar da época.
“Em Portugal combateu um povo que quis continuar a ser livre. Por isso são importantes momentos como este, momentos em que contamos a nós próprios estórias acerca daquilo que somos e daquilo que conseguimos fazer. Essa é a nossa herança mais valiosa, porque encerra em si memórias e valores que nos distinguem e nos unem. Aqueles portugueses fizeram o impossível apesar dos sofrimentos e dos sacrifícios a que foram submetidos. A todos causou espanto a capacidade dos portugueses para suportar as consequências da estratégia adoptada. O General Wellington foi bem claro, em Agosto de 1810 na sua Proclamação ao Povo de Portugal: ‘Os portugueses vêem agora que não têm outro remédio para o mal que os ameaça senão a determinação para a resistência. Resistência e determinação para tornar o avanço do inimigo o mais difícil possível, tirando-lhe do caminho tudo o que é valioso ou que possa contribuir para a sua subsistência ou para frustrar o seu progresso’”, exaltava Cavaco Silva.