Os Processos Casa Pia

Com a leitura da sentença – ou da sua súmula? – do tribunal de primeira instância, na passada sexta-feira, termina um capítulo importante – apenas isso – do famoso ‘Processo Casa Pia’, no qual foram julgadas – e agora condenadas – algumas figuras públicas nacionais pela prática de abuso sexual de menores, que estavam à guarda do Estado, internos numa instituição pública.
O processo nasce, depois de tomar proporções públicas, na sequência de uma reportagem da SIC e do Expresso, em Novembro de 2002. No entanto, desde os finais da década de setenta do século passado que o Estado conhecia denúncias de que havia a prática de lenocínio com jovens casapianos.
O ‘Processo Casa Pia’ nasce num momento em que em Portugal já se assistia a uma grave crise na credibilidade do sistema judicial. Recordamos que, em 2002, já era notório o sentimento colectivo de que “os processos dos poderosos acabavam todos por prescrever” – os casos Melancia, Costa Freire, Zezé Beleza provavam-no. Perante o escândalo da rede de pedofilia, como na altura se chamou, os operadores do ‘Poder Judicial’ português – todos eles – estabeleceram que o ‘Processo Casa Pia’ teria de ser um caso exemplar. A maneira como o sistema conseguisse resolver um processo com esta complexidade, e com esta atenção mediática – causada pela repugnância dos crimes em causa e pela notoriedade dos acusados –, revelar-se-ia fundamental para a credibilização da Justiça. Assim se pensava no final de 2002.
Este peso, a pressão, a responsabilidade de ter nas suas costas “a sobrevivência do sistema judicial e, em consequência, da Democracia e do Estado de Direito”, não pode ter beneficiado o trabalho dos envolvidos na investigação. Era preciso arranjar suspeitos com rapidez. Era preciso que esses suspeitos fossem, de facto, figuras públicas com notoriedade, para responder às expectativas iniciais.
O julgamento tinha que acontecer da mesma maneira, de forma célere, sem incidentes processuais relevantes – dentro do possível com sete arguidos e um milhar de testemunhas – e, da sentença, tinham que resultar condenações. Independentemente da culpa dos acusados – que não discutimos por não conhecermos o processo, nem nos arriscarmos a tecer considerações ‘pelo que nos parece’ – este processo, na demanda da moralização, só poderia ter os efeitos contrários.
A Justiça quer-se distanciada do burburinho para ser justa – por isso, na imagem, é cega. Por outro lado, mais do que um sistema operativo de administração de uma função soberana do Estado de promoção de igualdade material e defesa da segurança e tranquilidade colectivas, a Justiça é um sentimento. Uma dimensão subjectiva através da qual as pessoas se sentem ou não tranquilas com o sistema e, em consequência, com a comunidade onde estão inseridas. Num caso em que cada sessão de julgamento é comentada na televisão, por pessoas que não conhecem o processo, não há possibilidade de promover a tranquilização e credibilização. Ou seja, este processo nunca poderia – em tempo algum – beneficiar a credibilidade no sistema judicial português.
Oito anos passados, o ‘Processo Casa Pia’ acaba, então, por ser mais do que um processo-crime ou caso de justiça. Foi um conjunto de muitos outros processos. Foi, desde logo, um processo de credibilização da Justiça portuguesa. Uma tentativa que hoje se percebe amplamente frustrada. Foi um processo de consciencialização de que o segredo de Justiça é um mito e de promoção do mito de que o poder desregrado da comunicação social é um direito. Foi um processo de purga política – lembremos as escutas a Ferro Rodrigues, António Costa e Jaime Gama, e os efeitos que provocaram. Foi, também, um processo em que foi notória a fragilidade do sistema judicial à manipulação do poder político – com as alterações à la carte feitas ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, ‘encomendadas’ para casos concretos. Foi um processo da demissão e desresponsabilização do Estado no que de repugnante acontece com crianças que estão à sua guarda.
Infelizmente, não há razões para, com a leitura da sentença e a condenação dos prevaricadores, nos sentirmos mais tranquilos.

Editorial do Jornal da Mealhada de 8 de Setembro de 2010