Faz hoje 40 anos que, aconteceu o episódio que para a História da Democracia Portuguesa ficará conhecido como a Revolta das Caldas. Um golpe falhado, mais um – como já havia sido o da Revolta da Mealhada, em 11 de outubro de 1946 – com vista ao derrube do Estado Novo, nesta altura, em 1974, já no final da Primavera Marcelista. O golpe, alegadamente, “pouco preparado” foi o percursor do 25 de Abril, uma vez que ajudou a congregar a ideia de que os oficiais teriam de se unir em torno do Movimento das Forças Armadas se quisessem acabar com o regime.

http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2014-03-16-revolta-das-caldas-serviu-para-preparacao-do-25-de-abril;jsessionid=009CE3B29EDEB6145858AA9573C29CCE

O ’16 de Março’ tem lugar onze dias depois do documento de Ernesto Melo Antunes ‘Os Militares, as Forças Armadas e a Nação’ ter sido aprovado na reunião da Comissão Coordenadora do MFA. Tem lugar, ainda, dois dias depois de os generais António de Spínola e Francisco da Costa Gomes, Chefe e Vice-Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, respetivamente, serem demitidos por não terem ido ao beija-mão da Brigada do Reumático.

O Golpe previa a participação de outras unidades militares, mas apenas o Regimento de Infantaria n.º 5, das Caldas da Rainha, saiu do quartel e marchou sobre Lisboa, sob o comando do capitão Armamdo Marques Ramos, com 250 homens. Às portas de Lisboa, isolado, capitula perante as unidades leais ao regime. São todos presos, na Trafaria.

Na televisão, o presidente do Conselho, Marcello Caetano, consideraria a ação como “um triste episódio militar” fruto da “irreflexão e a ingenuidade de alguns oficiais”. Mas a revolta não foi indiferente ao Chefe do Estado Novo, que se refugiou no Palace do Bussaco, nos dias imediatamente a seguir, para refletir e repensar a estratégia de (não) renovação do regime que prometera.

Texto do Correio da Manhã:

A Revolução a 40 Km/h das Caldas para Lisboa

Saíram do quartel das Caldas da Rainha para fazerem a revolução. À beira de Lisboa, os oficiais da RI5 voltaram para trás. A má comunicação e a chuva impediram que o 25 de Abril de 1974 tivesse nascido no 16 de Março

Céu cinzento. Sábado. Meia-noite. 16 de Março. 1974. Uma arma. Dois homens. Defrontam–se. Virgílio Varela, o então novato capitão do Movimento das Forças Armadas (MFA) detém o segundo-comandante do Regimento de Infantaria 5 (RI5) das Caldas da Rainha. Os camaradas Rocha Neves e Silva Carvalho aparecem. Neutralizam a direcção da unidade. O comandante acorda. Mal larga a cama é preso.
As tropas movimentam-se. Camiões. Unimogues. Berliets. Jipes formam a coluna que estava pronta para partir. A meta era ocupar o aeroporto da Portela. E os militares estão impacientes. Têm pressa. Pensam que estão atrasados. Outras forças esperam por eles. Engano. A RI5 é a única que está a cumprir o plano, desde há semanas alinhavado e confirmado na véspera, em Lisboa, na casa de Manuel Monge, capitão do MFA, onde estavam presentes Otelo Saraiva de Carvalho e Casanova Ferreira.
A tensão sobe. O tempo voa. Quatro da amanhã. O troço de soldados em linha comandada pelo capitão Armando Marques Ramos atravessa os portões do aquartelamento do RI5, e inicia a marcha rumo a Lisboa. Os trinta e três oficiais, e mais de duzentos soldados, querem derrubar a ditadura mais teimosa da Europa.
O velocímetro não impõe milagres; 40 km/hora era o máximo que as máquinas bélicas suportavam. Mesmo assim, às seis da manhã, alcançam a capital. A três quilómetros das portagens de Sacavém deparam-se com um golpe totalmente distinto do almejado. Dentro de um Mini, os majores Casanova Ferreira e Manuel Monge trazem novidades. Péssimas; para darem meia-volta e voltar para o lugar de onde tinham vindo. Razões? Falta de planeamento e de comunicação. A chuva não explica o motivo do falhanço, mas os rádios ANGRCq fraquejaram com tantas nuvens.
Pior do que o boletim meteorológico foi o facto das outras unidades, como o Centro de Instrução de Operações Especiais, e inclusive a de Lamego – a pioneira a dar sinais de rebelião, não tinham, sequer, movido um pé. As forças de Mafra ainda andaram 13 quilómetros, em vão. Retrocederam. Os apelos radiofónicos estão a milhas do êxito.
Ninguém. Somente a RI5 pactuou com o golpe celebrizado por ‘Golpe das Caldas’. A tentativa falhara redondamente. Os oficiais não acreditam. Alguns não se conformam. Outros não querem arredar o pé. O capitão Armando Ramos recusa-se a dar a meia-volta sugerida. Insiste em realizar o intento: ocupar o aeroporto. E está preparado. Se a coisa azedar e ficar torta, dois aviões seriam a solução ideal para fugir, por exemplo para Suécia, ou para outro canto do mapa. Silva Carvalho aplaude a ideia. Também discorda com a marcha-atrás. Mas Casanova e Monge convencem-nos; lembram que no aeródromo estariam isolados, e no quartel das Caldas ficariam mais protegidos. O Mini fica estacionado em Sacavém. Monge e Casanova acompanham a coluna militar.
Às oito e quase quinze da manhã entram no quartel. A roupa e o corpo ensopados da humidade, e o estômago a dar as horas, falaram alto. Há quem peça o pequeno-almoço para o regimento. A comida não teve gustação doce. São cercados pela RI15 de Tomar, RI7 de Leiria, Polícia Móvel, Escola Prática de Cavalaria de Santarém e pela GNR e pela PIDE/DGS. O Brigadeiro Serrano ameaça abrir fogo. Os militares sentem-se à-vontade; havia oficiais que se posicionavam do lado dos revoltosos.
A rendição surge às cinco da tarde. Os trinta e três oficiais são presos na biblioteca e os praças e sargentos no refeitório. Monge, Casanova, Ivo Garcia, Silva Carvalho, Marques Ramos e os que mais deram a cara pelo movimento seguem o caminho da prisão da Trafaria. A esmagadora maioria dos participantes acabam por ser transferidos para Santa Margarida. Ao que consta, uma semana após a saída em falso, o quartel das Caldas da Rainha tinha sofrido uma limpeza: só se viam caras novas.
Teve influência. Quiçá foi uma resposta. Emotiva.
(…)
Decorreram trinta e quatro anos, mas para Armando Marques Ramos, o militar que assumiu o comando do regimento RI5, parece que foi há meia–hora. O coronel não esconde a emoção. Considera ‘O Golpe das Caldas’ uma data deveras marcante na História de Portugal.
‘Foi o dia em que tive a certeza que valeu bem a pena ter nascido’. As palavras ficam pequenas para relatar a alegria, exprimir a emoção, o contentamento ímpar: ‘Nós íamos libertar o país. E que ninguém esqueça; se não fosse o 16 de Março de 1974 não teria existido o 25 de Abril.’
Sem dúvidas. O regime ditatorial conhecia de ginjeira o que se estava a passar no seio das Forças Armadas. O sonho, simples, consistia em implementar os três ‘D’ – desenvolver, democratizar e descolonizar.
‘Não.’ Para o tenente-coronel a tentativa de afundar a ditadura não foi um acto precipitado. ‘É claro que antes da reunião em casa do Manuel Monge, já tínhamos as coisas alinhavadas.’ A tampa que os pára-quedistas tinham dado a 12 de Março de 1974 não esmoreceu a gana de dar um coice ao fascismo.
Quando saiu pelas nove e meia da tal reunião em Lisboa, em casa de Monge, foi directamente para as Caldas da Rainha, convicto da possibilidade da realização dos objectivos. Porém, os camaradas de outras unidades mudaram de ideias. Venda Novas não quis aderir. A chave do paiol de Santarém estava na mão do ‘inimigo’. Mafra saiu mas desistiu. ‘Se houve falha foi por causa da comunicação’. As transmissões das rádios, quase, primárias. A dificuldade de transmitir oks, sins, nãos, induziu descoordenação.
‘O coronel Romeira, da Cavalaria 7 estava feito connosco, mas na altura hesitou’. Mais do que hesitar, telefonou para o cunhado que tinha um cargo no Governo, e terá dado com a língua nos dentes. Spínola adverte Manuel Monge para essa probabilidade. Ao capitão e a Casanova só lhes resta a hipótese; travar o golpe de estado. ‘Foi uma decepção’. E um militar decepcionado aos 31 anos tem força. Mas não chegou. ‘Fiquei preso na cadeia da Trafaria’. Trataram-no bem. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, a viragem era certa. Apanhou um pequeno susto. Quando Marcelo Caetano é ovacionado no Estádio de José Alvalade, o coronel disse ‘Ai, ai, ai’. Mas os ais não tinham fundamento.
‘Reina a ordem no país’ disse Marcelo a 28 de Março de 1974, na sua derradeira ‘Conversa em Família’, na RTP. Saiu-lhe caro. Quarenta dias após o ‘Golpe das Caldas’, a Revolução de 25 de Abril derrubava o regime absolutista. Reinava a ordem da liberdade.