Memória de um servidor

Tributo
a Basílio Gouveia Lopes

 

Depois
de uma vida cheia, de trabalho e sacrifício, cabe ao homem na sua reforma uma
escolha dolorosa. Ou goza tudo o que conquistou, ou continua a servir.

 

Terá
sido esse um dos mais profundos dilemas de Basílio Gouveia Lopes, na última
fase da sua vida. Confidenciou-mo várias vezes. Mas o impulso diário focava-o
no essencial: Quem não vive para servir… não serve para viver.

 

É
normal pensar-se que o ocaso da vida de um homem é de pantufas e gozo do
conquistado. Que desperdício! O saber acumulado, a exaltação de uma vida cheia
só pode dar a cada homem a oportunidade terminal de servir a comunidade em que
vive de corpo e alma. Será egoísmo viver a vida no seu casulo sem nada fazer
pelos outros? Poderá não ser. Poderá até ser aceitável numa sociedade que
interna os velhos e os trata como aparas de um detrito que já serviu, mas já
não tem valia.

 

Cresceu,
fez-se homem. Trabalhou como azeiteiro e calcorreou os caminhos das pedras até
decidir ir para França. Trabalhou de sol a sol na terra dos gauleses. Com o
filho longe, dando tudo ao trabalho. Foi como são muitos. Foi mais um ‘valise de carton’ como tantos outros…
francês na sua terra, português na terra dos outros… sem ser nada, mas
conseguindo conquistar tudo. Tudo o que sonhara.

 

Regressou
a casa no final de uma vida de trabalho. Bolsos cheios, boa ‘retraite’, alguma saúde. O sonho do
descanso…

 

Mas
não. Soube dizer que sim para a missão de secretário da Junta de Freguesia da
Mealhada. Oito anos de serviço diário, empenhado, preocupado, diligente,
austero, capaz e muito exigente. Um encargo que foi ficando mais pesado, mas
nunca desistindo.

 

Antes
da Junta de Freguesia já tinha assumido a missão de se dedicar à Irmandade de
São Sebastião, na Mealhada. E a irmandade fundada em 1835 renasceu, e cresceu,
e passou a cumprir as obras de misericórdia do seu estatuto. Todas. E a capela
do mártir foi recuperada, obras e mais obras. Não o fez sozinho. Naturalmente.
Mas foi força motriz e porto seguro em cada momento.

 

Na
paróquia assumiu lugar no Conselho Económico Paroquial. Pesada tarefa a de
abrir e zelar pela capela mortuária. Muitos trabalhos, muita dedicação, sempre
empenho, preocupação, diligência, austeridade, capacidade e muita exigência.

 

No
final, há poucos meses, procurou-me e pediu-me que o ajudasse na missão que
faltava e que o preocupava: “Não quero morrer sem terminar o processo do busto
ao padre Abílio”. Como secretário da Junta de Freguesia tinha apoiado a
primeira iniciativa e como membro do Conselho Económico Paroquial tinha apoiado
todas as investidas. Mas faltava fazer-se. Respondi-lhe: “Vamos a isso. Outra
vez”. E fomos, mas foi ele que foi buscar orçamentos, ver possibilidades de
outros materiais que não o bronze, arranjar quem esculpisse e quem fizesse. De
tudo ia dando conta e pedindo apoio e compromisso. Tinha medo que se pelava de
falar… “às vezes escapa-me o francês!”, mas nunca deixou de ir onde quer que
fosse.

 

A
doença trouxe o sofrimento, e o penar. E já não conseguiu ir à festa da
inauguração do seu busto, da sua última missão. Mas o busto está lá. Está
feito.

 

“Ninguém
comete maior erro do que nada fazer, só porque o que pode fazer é pouco!”.
Dizia Edmund Burke, filosofo irlandês do séc. XVIII. Porque o que pode parecer
pouco, muitas vezes faz a diferença. O serviço é, verdadeiramente, um caminho
de felicidade.

 

Obrigado
senhor Basílio!
Texto publicado no Jornal da Mealhada de 30 de abril de 2014