“Não mais deveres sem direitos?
Não mais direitos sem deveres?”*
A propósito da Carta dos Deveres do Homem

A Carta dos Direitos do Homem, aprovada pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, constitui-se, depois de mais uma tentativa de união e concertação entre os governos do mundo (a Organização das Nações Unidas), como uma resposta do mundo civilizado às atrocidades infligidas na Segunda Guerra Mundial contra a humanidade, contra a razão de ser do próprio Homem. Trata-se de um documento que foi assimilado em muitos Estados como a lista constitucional dos direitos fundamentais e ao fim de sessenta anos continua a ser importante lembrá-lo, divulgá-lo e sensibilizar todos para a importância dos valores que procura proteger. O ano de 2009 foi declarado como o Ano Internacional para a Aprendizagem dos Direitos Humanos.
Foi ao longo deste ano de 2009 que o Corpo Nacional de Escutas – Escutismo Católico Português, a maior associação juvenil do país, entendeu assinalar o ano internacional com um amplo debate, entre os seus associados, inicialmente, e depois com a sociedade civil, sobre quais deveriam considerar-se como os Deveres do Homem.
“O Homem é sujeito de Direitos, largamente consagrados, embora demasiado frequentemente desrespeitados, mas é igualmente sujeito de Deveres, deveres cujo objecto é, também, em muitos casos, o próprio Homem. Será que alguma vez alcançaremos o pleno respeito pelos Direitos do Homem não sendo pelo efectivo cumprimento por parte do Homem, de todos os homens e mulheres, dos seus Deveres? E quais são esses Deveres?”, pode ler-se no que foi apresentado como o enquadramento deste projecto, cujo objectivo era: “Contribuir para uma definição dos Deveres do Homem”.
Foi deste esforço de muitos jovens escuteiros portugueses – todos com idades compreendidas entre os 14 aos 22 anos – que nasceu a Carta dos Deveres do Homem. Um texto onde se enunciam deveres do Homem para consigo próprio, para com os outros e para com a Natureza, e que se encontra integralmente reproduzido na última página desta edição do Jornal da Mealhada.
A Carta dos Deveres do Homem é um “verdadeiro rol das obrigações que individualmente devem ser promovidas e cumpridas a fim de se alcançar uma plena expressão da responsabilidade individual na prossecução do bem comum, uma plena realização comunitária dos direitos universais e uma plena vivência em liberdade, justiça e paz”. Assim o esclarece o texto da própria carta.
Num Ensaio intitulado “Direitos e Deveres: juntos ou separados?”, publicado no jornal i, em 21 de Novembro de 2009, João Carlos Espada – Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa –, que também participou no projecto como especialista convidado, coloca a seguinte questão: “Por que razão hoje só falamos de direitos e nunca referimos os deveres? Por que motivo a lista de direitos não pára de crescer e insistimos em não mencionar qualquer dever?”. Não seremos obrigados a dar razão a este académico quando vemos que educamos mais para os direitos do que para os deveres colectivos? Quando vemos que tantas vezes se fala da intocabilidade dos direitos adquiridos e raramente se proclamam deveres fundamentais para com os outros e para connosco próprios?
No ensaio a que aludimos – e cuja leitura sugerimos a quem queira aprofundar o assunto, o texto permanece acessível na Internet – João Carlos Espada analisa o que poderia chamar-se de história do Dever nos pensamentos clássico e cristão e, depois, em Maquiavel, Rousseau e Nietzche. Conclui preferindo e citando Edmund Burke: “Os direitos não podem ser separados dos deveres. E nem uns e nem os outros dependem da vontade (da maioria, ou dos mais fortes, como em Rousseau e em Nietzche, respectivamente). Existem objectivamente e é preciso descobri-los. Trata-se de uma mensagem crucial da civilização ocidental”.
É preciso descobrir direitos e descobri deveres. Porque ao Direito à vida corresponde mais do que o Dever de não matar. Porque ao Direito de todos à Habitação, à Educação o à Saúde, deve corresponder mais do que o Dever de pagar impostos.
Os escuteiros portugueses procuraram fazê-lo. O documento que produziram pode ser apenas uma óptima oportunidade para pensar no assunto. Pode ser um bom argumento para começar uma conversa, pode ser um bom motivo para abrir o debate nas nossas escolas, nos nossos blogues ou no nosso jornal: “Será que alguma vez alcançaremos o pleno respeito pelos Direitos do Homem não sendo pelo efectivo cumprimento por parte do Homem, de todos os homens e mulheres, dos seus Deveres? E quais são esses Deveres?”. O leitor aceita o desafio de responder a estas perguntas?

* Expressão retirada da ‘Internacional’, o hino do socialismo internacional: “À opressão não mais sujeitos/ Somos iguais todos os seres/ Não mais deveres sem direitos/ Não mais direitos sem deveres”