A Verdade em Tempos de Cólera
Os desafios de uma República Nova – Parte I

“A República nasce, em Portugal, de um sonho lindo”. Um sonho de Igualdade, em que todos são cidadãos, em que todos são iguais perante a Lei, perante o Estado, perante as oportunidades e a esperança, em que todos podem ter o destino nas suas próprias mãos. Um sonho libertário, em que todos são responsáveis pela promoção do bem-comum, na defesa intransigente da dignidade de cada um e do seu semelhante, na obediência a direitos invioláveis e a deveres intransmissíveis. Quando passam cem anos sobre a implantação da República em Portugal, e mesmo sem procurar imaginar ou conhecer em que condições viviam os nossos antepassados, não podemos deixar de reconhecer que as promessas do alvorecer de um novo regime eram galvanizadoras e motivantes.
Pouco interessa, hoje, saber se as promessas foram cumpridas ou não. Se o banho de sangue na rotunda – o de quem lutava pela mudança e o de quem defendia o que acreditava – não fazia antever a instabilidade de dezasseis anos de terrorismo de Estado. Dezasseis anos de libertinagem que justificaram mais quarenta e oito de ordem, primeiro, e de restrição e castramento a seguir. Interessa pensar mais no hoje e no amanhã, do que no ontem. Apesar de ser fundamental conhecer o ontem, porque ele e as suas cicatrizes continuam no presente.
O centenário da República surge na nossa vida colectiva num momento particularmente difícil. Um momento de crise social muito forte sustentada na consciência de vivermos numa severa crise de valores e perante uma completa falta de liderança na classe dirigente e nas instituições. Depois de uma semana em que o apelo à unidade e à convergência entre partidos políticos foi insultado com tomadas de posição unilaterais de finca-pé e de proclamação de, ainda, mais medidas de austeridade, o país mergulha numa depressão profundíssima.
Na intervenção que proferiu nas cerimónias oficiais do 5 de Outubro, Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República, citou António Teixeira de Sousa, o último chefe de Governo da Monarquia, para justificar a queda do regime: “A monarquia estava cercada de republicanos e indiferentes”. “É a conjugação perversa das duas realidades que tantas vezes abala os alicerces de um regime: de um lado, a indiferença do povo; do outro, a incapacidade dos agentes políticos para encontrar soluções ajustadas às necessidades concretas do país”, acrescentou Cavaco Silva.
Portugal, como há cem anos, vive hoje um momento de profunda indiferença do povo e de manifesta incapacidade dos agentes políticos para encontrar as soluções para as necessidades do país.
Uma indiferença que resulta do facto de as pessoas estarem completamente estranguladas pela dupla face de uma aguçada espada que, por um lado, dá demasiadas garantias sociais a quem podendo trabalhar sobrevive à custa do erário público através de prestações sociais; e, por outro, obriga as pessoas a trabalhar para conseguirem angariar os meios financeiros necessários ao cumprimento de obrigações que o consumismo fomentou e incentivou durante décadas. Há os que são indiferentes porque o que está os favorece, há os que são indiferentes porque não têm liberdade para agirem de maneira diferente.
Acresce uma manifesta incapacidade dos agentes políticos que já é, por todos, reconhecida. Uma incapacidade que resultará, eventualmente, da falta de conhecimentos técnicos, da falta de experiência do mundo do trabalho e do quotidiano das empresas e das instituições, da falta de responsabilização política do sistema, da falta de liderança e de poder de galvanização, da falta de consciência comunitária da vida, da falta de consciência de co-responsabilidade social, da falta de espírito e de educação para o serviço, de falta de memória e de conhecimento do sentido da história, da falta de independência relativamente ao sistema e ao exercício de cargos públicos, da falta de inteligência e coragem para falar verdade.
“Há cem anos, como hoje, o essencial é a vida concreta das pessoas”, afirmou Cavaco, na terça-feira. E a vida concreta dos portugueses é penosa. Hoje é penosa, mas amanhã, com o IVA a 23 por cento – quase um quarto do preço de um produto – será ainda pior.
A vida concreta dos portugueses joga-se num tabuleiro em que, na Educação, “os filhos são órfãos de pais vivos”. Pais que não têm tempo, nem paciência para eles, não tem alegria, carinho e amor para lhes dar esperança. Na assistência aos mais idosos, os velhos preferem ir para depósitos em vez de irem para casa dos filhos que fizeram nascer, para não incomodar e para não chatear, mas também para não ajudar e para não contribuir. Os portugueses não reconhecem o seu código de valores no sistema judicial, que não lhes dá, colectivamente, o sentimento de segurança que a Justiça tem por obrigação proporcionar. A organização da Saúde não presta a todos, por igual, acesso eficaz à prestação de cuidados básicos. Na gestão financeira e económica do Estado não há uma comunhão clara entre o que os portugueses sentem na pele e as prioridades de investimento enunciadas pelos governantes. Os jovens estão a emigrar porque não são capazes de encontrar futuro em Portugal. A noite esconde caixotes de lixo dos hipermercados que se enchem de novos pobres a quem a vergonha se perdeu com a vitória da fome.
Portugal atravessa um momento decisivo da sua história. Um momento em que está em causa a própria coesão nacional, esse “bem precioso” e fundamental. E a cada momento decisivo se joga a escolha entre o catastrofismo e a oportunidade. Entre o fado, o fatalismo, a tragédia e o chamamento ao D.Sebastião, e a oportunidade de reformar, de refundar, de renovar, de reordenar, de reerguer.
Frei Fernando Ventura, frade franciscano capuchinho, que depois de um comentário fabuloso e assertivo na SIC Notícias, tem sido visto e comentado em todas as redes sociais, dizia, nesse registo: “Temos demasiados denunciadores e não temos anunciadores”. Da sua intervenção sai a exortação a “começar a sonhar espaços novos”, e acrescentava: “Temos de deixar de enfrentar os desafios novos com as soluções velhas”. “Despedir os políticos profissionais para empregar os profissionais na Politica”, era uma sugestão, “Construir um projecto social diferente”, era outra, “Ter coragem para formar consciência crítica, inteligente e corajosa”, era mais outra, “Deixar de educar para o ter e passar a formar para o Ser e para o ser com os outros”, era ainda outra.
Não faltarão razões para lutar pelo sonho lindo de sermos todos iguais e todos igualmente felizes. Um sonho que pode ser uma utopia, uma utopia que vale cada dia da nossa vida, porque é na felicidade dos outros que encontraremos a nossa própria felicidade.
O primeiro desafio deste Tempo Novo, desta República Nova – compreenda-se o adjectivo longe das referências sidonistas e da Primeira República –, da Quarta República, se se preferir, é o da coragem – do Povo e dos Políticos – “para dizer que o Rei vai nu, por mais engravatado que pareça estar”, como diz Frei Fernando Ventura. Coragem para dizer a Verdade, toda a Verdade, mesmo em tempos de cólera.

Editorial do Jornal da Mealhada de 6 de Outubro de 2010