Opinião sobre a Reforma da Administração Autárquica
 
A
inevitabilidade de um “nem pensar!”
 

Portugal precisa, urgentemente, de uma Reforma da Administração
Autárquica. Não o dizemos por questões meramente economicistas, ou por qualquer
espécie de preconceito. As autarquias portuguesas precisam de um novo
enquadramento legal, no âmbito das suas atribuições e competências, da clareza
do seu exercício, da sua forma de eleição, das relações entre os vários níveis
da administração local. Precisam, também, de uma revisão do seu mapa
territorial e, ainda, do completar do edificio jurídico, com a criação das
regiões administrativas, prevista na Constituição democrática.

O
XIX Governo Constitucional decidiu – e bem – abalançar-se nesta demanda. No
entanto, optou pelo caminho errado, cedeu onde não se admitiria que o fizesse
e, portanto, falhou redonda e categoricamente nesse imperioso desígnio
nacional.

A
poucos dias de terminar o prazo para a pronúncia dos municípios relativamente
ao primeiro eixo da alegada Reforma – o da reformulação do mapa territorial – e
quando se sabe que os partidos do Governo não se entenderam quanto à elaboração
de um projecto de Lei Eleitoral – que seria o segundo eixo da reforma -, é
inevitável uma recusa veemente da alegada Reforma Administrativa e a exigência
da interrupção imediata do processo legislativo, sob pena da implementação de
um sistema perfeitamente atentatório dos preceitos mais importantes do Poder
Local Democrático.
 
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O processo de elaboração desta alegada reforma começou de forma salutar, com
a elaboração de um documento – “verde” – submetido a uma discussão
pública. Nesse documento – mal ou bem – era defendida uma categorização das
freguesias e definido um limite populacional mínimo por tipo de freguesias. Na
nossa opinião, falhava nesse enquadramento inicial a visão reformista global
que deveria analisar – a extinção, mas também a criação de – freguesias, mas
também de municípios e círculos eleitorais uninominais. Faltava, ainda, uma
definição concreta do conceito de freguesia – com a inevitável fixação de um
limite populacional máximo -.

2
O Governo ficou completamente aterrorizado com a vozearia que se fez sentir
por parte de alguns autarcas e, em vez de melhorar o “documento
verde”, decidiu correr para a frente. Numa suposta posição de força meteu
o “documento verde” na gaveta (antes mesmo de terminar o período de
discussão pública) e construiu uma reforma completamente diferente. Para que
não se verificasse mais gritaria, alegando falta de tempo, o projeto da reforma
não chegou a ser discutido e só foi conhecido depois de aprovado pelo Conselho
de Ministros, com o nome de Lei n.º22/2012 de 30 de maio.

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Esta reforma, entre outros absurdos, determina, então, que todos os municípios
– a bem ou a mal – diminuam o número de freguesias (excepto para os que tiverem
menos de quatro), independentemente seja do que for. Esta universalidade – qual
solidariedade do “comem todos” – acaba por ser, então, um exemplo
magnífico do absurdo que é a chamada igualdade formal, que não olha ao que é
diferente para um tratamento comum, mas cego e nefasto.

Em
hipótese académica, o município perfeito, com sete ou oito freguesias de
população equilibrada e com características semelhantes é obrigado a agregar
freguesias, criando, então, inevitavelmente, um desequilíbrio completo na
organização destas comunidades.

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Se nalguns municípios bem próximos – como os de Mortágua e Penacova, por exemplo
– poderá advir desta reforma alguns aspectos positivos (como o da agregação de
freguesias com um número diminuto de pessoas), noutros, também próximos,
persistem outros problemas (como o da freguesia de Santo António dos Olivais,
em Coimbra, que tem muito mais pessoas do que todo o concelho da Mealhada).

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No caso concreto do concelho da Mealhada não se vislumbra qualquer benefício
ou resolução de problemas, antes pelo contrário.

No
concelho não há nenhuma freguesia com menos de mil habitantes – que era critério
no “documento verde” -, ou seja, segundo a primeira fase desta
alegada reforma, não careceria de qualquer “intervenção
reformadora”.  Com a nova lei do
“comem todos”, o concelho tem de reduzir de 8 para 6 as suas
freguesias. Não pode unir a Mealhada com a Pampilhosa e as novas freguesias
agregadas terão de ter continuidade territorial. São estes, à partida, os
únicos critérios.

Se,
de certa forma, seria entendível voltar a juntar Ventosa do Bairro e Antes –
que até 1963 era uma só freguesia e são, ainda hoje, uma só paróquia religiosa
-, dado que são as duas freguesias menos populosas (2003 habitantes) e com uma
contiguidade quase perfeita (em 1104 ha), tudo o que vá para além disso já é
praticamente impossível. Unir Ventosa do Bairro e Antes – mesmo que as duas
freguesias, com um governo conjunto, mantivessem a identidade e fossem tratadas
como duas freguesias conjunturalmente unidas – não seria fácil gerir as suas
populações e criar-se-iam problemas sociais completamente desnecessários. Mas
proceder à agregação de qualquer outro par de freguesias no concelho é uma
asneira.

Agregar
Antes e Casal Comba (uma das maiores freguesias em extensão territorial) e
deixar Ventosa do Bairro isolada seria acentuar as desigualdades. Juntar Antes,
Ventosa do Bairro e Casal Comba seria criar uma desmesurada extensão
territorial que ia da Póvoa do Garção a Santa Luzia (seriam 3024 ha, quase
trinta por cento do território). Juntar Casal Comba e Barcouço, ou Casal Comba
e Pampilhosa, ou ainda Mealhada e Casal Comba seria criar uma freguesia
populosa de mais, face às restantes. Por outro lado, juntar Vacariça e Luso, ou
Vacariça e Pampilhosa, ou Vacariça e Mealhada (que foram uma mesma freguesia
até 1944 e uma mesma paróquia até 1992), ou, até mesmo que artificialmente, Luso
e Mealhada, seria criar extensões de território descomensuradamente
ingovernáveis do ponto de vista da gestão dos recursos.

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Poderia restar uma solução menos má, a de agregar Ventosa do Bairro, Antes e Mealhada.
Uniam-se, assim, as duas mais pequenas freguesias à maior, mas, por outro lado,
àquela que na opinião de muitos, por ser a da sede do concelho e a mais urbana,
é a que menos se justifica. Não é essa a nossa opinião, mas respeitamos o
argumento.

Agregar
estas três freguesias seria criar uma entidade que ficaria com,
aproximadamente, um terço da população do concelho – cerca de 6500 habitantes –
e uma extensão territorial assinalável – 2132 ha, ainda assim menor que a
freguesia de Barcouço -. A questão é que a sede teria de ser recomendavelmente
na freguesia urbana – por imperativo legal -, ou seja na Mealhada, pelo que só
uma estratégia de desconcentração de serviços evitaria que estas populações
perdessem, de facto, proximidade com a autarquia.

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Resulta claro – assim nos parece – que um novo mapa administrativo no
concelho da Mealhada, com a obrigatória redução para seis freguesias só trará
novos problemas e não resolverá nenhum dos existentes. Porque também há
problemas.

Diferente
seria se, de facto, houvesse uma verdadeira reforma administrativa, com a
alteração, de facto, das freguesias e a resolução de problemas – como o de
parte de Santa Luzia ser da freguesia de Casal Comba e de Souselas, ou as
Lameiras – de São Pedro e São Geraldo, que têm contiguidade – serem ambas de
Luso ou ambas da Vacariça – e nessa solução juntar, também, a Lameira de Santa
Eufémia a esse consenso, ou colocar a Quinta do Valongo e Santa Cristina na
freguesia da Pampilhosa, ou resolver os imbróglios administrativos de Adões e
Sargento-Mor, entre muitas outras soluções que carecem de uma resposta
verdadeira. Resposta que esta alegada reforma nem sequer tenta dar.

8
Vimo-nos obrigados, então, a considerar que esta reforma, em vez de resolver
os problemas da administração autárquica visa, única e exclusivamente, diminuir
cegamente o número de freguesias. Pode dizer-se que é uma imposição do
memorando da troika. No entanto, da leitura do referido memorando,
resulta o compromisso de “reduzir significativamente o número de
autarquias locais”. Mas o que é, afinal, “significativamente”?
Dez por cento é significativamente? Metade é significativamente? Em lado nenhum
se determina o que se entende por “significativamente”, e essa
apreciação ficou ao critério zeloso de um qualquer funcionário, armado em
legislador que entendeu ordenar a redução percentual de freguesias, e ignorando
o conceito do que são autarquias locais (onde estão, também os municípios).

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Distanciamo-nos da ideia de que esta reforma sofre de inconstitucionalidade
pelo facto de ser a Assembleia Municipal a determinar o mapa administrativo
local, quando essa é uma competência exclusiva do Parlamento. A decisão final
caberá, sempre, ao Parlamento que, para aferir da regularidade e decidir quando
houver abstinência municipal, nomeou uma comissão técnica – presidida pelo
académico coimbrão Lopes Porto. Recorde-se que, essa ideia de ser a assembleia
municipal a definir que freguesias vai agregar, foi uma cedência do Governo à
acusação de que os municípios estavam a ser desrespeitados por não terem
“voto na matéria”. A haver inconstitucionalidade esta seria, então,
por excesso de participação, por excesso de democracia, o que não nos parece
ser defeito.

10
O Governo – nomeadamente quando confrontado pelo principal partido da
oposição (que teve um comportamento perfeitamente deplorável em todo este
processo) – sempre afirmou que a par desta reforma territorial apresentaria uma
reforma da lei eleitoral autárquica e do quadro de competências das autarquias.
Soube-se, há poucos dias, que os partidos que sustentam o Governo não
conseguiram chegar a acordo quanto a uma proposta a negociar com o PS. Ou seja,
não há lei. Usando o raciocínio do próprio Governo, se não há nova lei, não há
reforma completa e, sem isso, um novo mapa autárquico é uma excreção.

Em
suma
, a reforma publicada na Lei n.º22/2012 de 30 de maio não é uma reforma,
não resolve problemas, cria novos problemas, não é uma obrigação da troika e
não há condições para ser completada – porque falta de consenso para a lei
eleitoral. Ou seja, não resta outra alternativa ao Governo e aos partidos que o
sustentam senão a sua suspensão imediata e de todos os seus procedimentos
acessórios.

Os
municípios que entendam ser benéfica uma alteração do seu mapa autárquico – se
para isso chegaram a consenso e encontraram boas soluções – que a implementem,
mas não há condições para ir além disso. Preocupe-se o Governo em regressar ao
debate do Documento Verde – e melhore-o – e em fazer uma verdadeira e
inteligente reforma administrativa do país. Indiferente ao desejo de ficar, na
História de Portugal, ao lado de reformadores como Rodrigo da Fonseca ou
Mouzinho da Silveira. Indiferente a vozearias que vão sempre ouvir-se da parte
de quem quer que tudo fique na mesma – mesmo que esteja sempre a criticar o que
está e passe a vida a desrespeitar as autarquias mais pequenas. Porque a
reforma da administração local é imprescindível para o futuro de Portugal.

Entretanto
a solução, na Assembleia Municipal da Mealhada, é, assim nos parece, aprovar,
por unanimidade e aclamação, um rotundo “Nem pensar!”. Mas não deve
deixar de dar a sua opinião e de emitir parecer de forma a, em todas as fases
de discussão, ter autoridade para se fazer ouvir sobre o que é melhor para a
sua população.

 
Artigo publicado na página 20 da edição de 12 de setembro de 2012 do Jornal da Mealhada. Escrevi este texto na qualidade de cidadão que não quer ficar com o peso de consciência de que não fez nada, só porque o que podia fazer era pouco”. Assinei-o, como licenciado em Direito, mestrando em Administração Pública e antigo autarca de freguesia e municipio de 2002 a 2005, eleito pelas listas do PSD.