Não consigo dizer, exatamente, quando entrou na minha vida. Honestamente não consigo. Mas a memória mais antiga que tenho dele passa-se numa praia, uma memória que ficou guardada em vídeo e me vem à lembrança muitas vezes, por dizer tanto sobre ambos os intervenientes.

Estávamos numa praia, num domingo à tarde. Um praia perto. Talvez Costa Nova, talvez Vagueira. Certamente por aí. Aos domingos íamos todos passear, as duas famílias, depois de termos almoçado no Painel. Nessa tarde o tempo estaria ventoso, mas a rapaziada nova quis ir ao banho. O Diogo, o meu irmão, teria uns 4 ou 5 anos, não tinha calções de banho. Fez uma birra e arranjou-se uns calções para o cachopo. Mas todos tínhamos um calção de banho com um cordão… e o do Diogo não tinha cordão. Nova birra, nova gritaria. ‘Não tem codão!’, berrava aquela pobre alma, escurinho, magrito: ‘Não tem codão!’. A mãe de um lado a dizer que não fazia falta, a Carolina por outro a sugerir paciência à pobre criança, enquanto que ao longe, todos nós já nos aproximávamos a agua fria.

O Trindade levantou-se, com o sorriso fácil, descontraído e malandreco que tinha quando estava descansado, pegou numa sapatilha (talvez do Zé Adriano), tirou o atacador branco. Sem dizer uma palavra chegou ao pé do miúdo, e atou o atacador aos calções. O Diogo, parou de chorar, gritou ‘Já tem codão’, e desatou a correr para a beira da água, ainda com a cara cheia de lágrimas. Problema resolvido: voltou a sentar-se a rir.

Esta é a imagem que tenho do Trindade. Connosco a vida toda. Calmo, sereno, descontraído. Apesar de à sua volta haver sempre gente muito nervosa e preocupada… neurótica até, diria eu. O Trindade é uma coluna – firme e segura – de calma e bom senso. Encolhia os ombros e fazia aquele sorriso malandreco tão misterioso como o da Gioconda. O Trindade resolvia o que podia ser resolvido. O Trindade falava tão rápido que era impossível não lhe dar toda a atenção. Comia metade das palavras e para o perceber era preciso olhar-lhe para os lábios e ouvi-lo nos olhos. Também se irritava, também se passava, mas esse era um outro ele. O Trindade sempre foi, para mim, a segurança.

Bastava sentar-se num sofá… para adormecer. Ainda hoje, sempre que me acontece o mesmo lembro-me dele. Pareço o Trindade, digo eu. E eu gostaria – confesso – de ser como ele. Sempre foi para mim um modelo. Um modelo de genro – lembro-me dele e do Sr. Adriano. Um modelo de pai. Um modelo de paciente e santo marido. Um modelo de irmão, de patrão, de tio… No entanto, o que mais me tocou, sempre, foi o modelo de amigo que ele me ensinou a ser. Num momento particularmente complicado – também para ele – nunca o ouvi dizer uma palavra mais amarga, mais dura, menos amiga relativamente a quem ele sabia que eu amava, por quem tinha respeito. Alguém que era seu amigo e por quem ele nunca demonstrou um pingo de rancor, podendo ter capital de queixa, tendo, certamente, todas as razões para censurar e arrazoar de critica. Nunca. Sempre teve, sempre me teve o respeito de perceber que um amigo escolhe a palavra certa, mesmo para verbalizar o que faz doer.

Quando soube que o Trindade tinha Esclerose Lateral Amiotrófica tive pena. Senti pena. Senti aquela comiseração impotente que nada faz nem nada ajuda. Fui vendo, a espaços largos… (largos demais para quem lhe tinha tanto respeito e consideração, lamento) o declínio e as limitações a aumentar. Nunca lhe vi um gesto de raiva. Vi resignação, vi angustia, mas nunca lhe senti a revolta do sofrimento.

A Vida do Trindade valeu muito a pena. E o sofrimento do Trindade não foi em vão. O Trindade conseguiu dar aos filhos, e especialmente ao Zé – com quem tenho mais proximidade e é um irmão mais velho -, no apoio e em tudo o que pelo exemplo mostrou no amparo ao sogro, o Sr.Adriano, o primeiro Parkinson que conheci, o testemunho do dever-ser. Conseguiu dar aos netos, e especialmente à Isa e ao Gonçalo – que conheço melhor por serem meus afilhados – o testemunho da resistência, da resiliência e, acima de tudo, o extraordinário pai que eles têm. Os filhos farão aos pais aquilo que viram fazer aos avós. E os meus afilhados viram muito. Viram tudo. E por isso, também por isso, o sofrimento do Trindade não foi em vão.

Dou graças a Deus pela vida do Trindade e pelo que a sua vida operou na vida dos amigos, dos filhos e dos netos. Pelo que operou em mim e no meu irmão. E, amanhã, quando me despedir dele, repetirei o que lhe disse em vida, ao ouvido, num momento em que ele já não me poderia responder: Obrigado por tudo o que fez por mim, pelo meu pai e pela minha família, e Desculpe a minha falta de coragem por nem sempre conseguir comprar uma guerra pelo que é justo, por nem sempre fazer o que devia fazer, mesmo que me cause dor.

Quando adormeço no sofá assim que me sento, lembro-me do Trindade. Espero lembrar-me também, no momento de escolher entre o que me é confortável mas não é certo, e o que é certo mas causa dor.

[2475.] ao #15383.º