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Estado é bom a pedir e mau a pagar?

Em 2005 o Governo da República, já chefiado por José Sócrates, determinou a publicitação da lista dos devedores — pessoas singulares e colectivas — à administração central e à segurança social. A bem do interesse nacional e para que não restassem dúvidas de que seria pública, notória e barata, a publicação é feita na Internet. Alguém poderá pôr em causa a justeza desta pena? Poderá alguém defender que o direito ao bom nome e à privacidade das relações com o Estado se sobrepõe às obrigações sociais e fiscais?
Dizem os entendidos que, em Portugal, o cidadão, como não reconhece o seu esforço e o resultado dos seus impostos nos serviços do Estado de que usufrui, não paga as suas contribuições na convicção de que está a cumprir uma obrigação moral e cívica. Noutras sociedades, porém, principalmente as do Norte da Europa e com tradição protestante, não pagar impostos tem tanto de crime como de pecado. Em Portugal não pagar impostos é um gesto não recriminado socialmente e, até, quantas vezes, aplaudido. O resultado é o que se vê: os que pagam terão de continuar a sustentar as despesas do Estado pelos que não cumprem.
O secretário de Estado da Administração Fiscal diz ter dados de que são as empresas do sector da construção civil que mais prevaricam no cumprimento das suas obrigações ao Estado. O presidente da Confederação da Industria de Portugal concordou e, por não ter defendido os interesses das associações de construção civil a ela associadas, viu-as sair da organização a que preside.
Há empresas que não pagam, há cidadãos que não cumprem. E o Estado? Será que o Estado — administração central e local, entidades públicas empresariais — paga, a tempo e horas, aos seus fornecedores, às várias empresas que lhe prestam serviços? Sabemos que não. Sabe-se que há muitas empresas que estão a passar dificuldades por serem credoras do Estado, titulares de créditos avultados que não conseguem cobrar em tempo útil.
Elogiamos directores-gerais dos impostos que tornaram a cobrança de impostos — mesmo coerciva — uma prioridade absoluta. No entanto, não usamos o mesmo critério para repudiar a inoperância e a falta de respeito do Estado ao falhar no cumprimento dos seus compromissos perante os seus credores.
O CDS, partido político que recentemente promoveu uma petição para que o Estado divulgue as dívidas que tem perante empresas e cidadãos, tornou público que os atrasos do Estado nos pagamentos aos seus credores atingem, em Portugal, a duração média de 152 dias, mais do dobro da média europeia.
Há poucos meses demo-nos conta do relatório da Federação Portuguesa da Indústria de Construção Pública e Obras Públicas (FEPICOP) que contabiliza em mais de 15 meses o atraso nos pagamentos às empresas suas associadas por parte de Câmaras Municipais tais como as de Aveiro, Coimbra, Figueira da Foz, Guarda, Ílhavo, Santa Maria da Feira, São Pedro do Sul, Vila Nova de Poiares ou de Lisboa. Em média as autarquias demoram 228 dias a pagar dívidas de obras públicas. Sabemos que a Câmara da Mealhada — como, aliás, a de Anadia e a de Oliveira do Bairro — não está no lote das faltosas e, portanto, não contribui para o bolo de 900 milhões de euros que só Câmaras e empresas municipais devem a construtoras civis. Não será este valor demasiado para um país com a nossa dimensão? São cerca de 90 euros por cada cidadão a residir em Portugal. Não haverá políticos a fazer obra com o dinheiro dos outros? Não deverá o Estado — as autarquias são administração descentralizada do Estado — pagar as suas dívidas com diligência semelhante à que exige aos contribuintes para pagamento dos seus impostos?
Por que razão está o Governo de José Sócrates tão pouco interessado em aceitar a exigência do CDS e em usar para as dívidas do Estado às empresas o mesmo critério que usa para as dívidas destas e dos cidadãos ao Estado?
Que legitimidade tem o Estado para exigir rigor aos contribuintes, para desmascarar nos outros os seus próprios pecados?

Editorial do Jornal da Mealhada de 28.11.07