Os Direitos e os Homens
A propósito do 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem

Assinalou-se na quarta-feira, 10 de Dezembro, o sexagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Do conjunto vastíssimo de iniciativas referentes ao tema e evocativas da data, destacamos uma que nos tocou especialmente — a do Bispo do Porto, Manuel Clemente, num colóquio sobre o tema realizado na Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa sob o título “Direitos do Homem e Bento XVI”.
Na sua intervenção, o Bispo do Porto, um dos mais brilhantes prelados portugueses, defendeu que “neste novo século que vivemos, a oportunidade da Declaração e a substancialidade do que ela afirma nos seus vários artigos é, de algum modo, ainda mais urgente do que o foi no início”. A justificação dada para tão peremptória afirmação assenta na “certa rarefacção cultural que atinge o mundo ‘ocidental’ e, a partir dele, se difunde relativizando muito do que foi afirmado, tornando mais ténues do que pareciam ser as afirmações da Declaração de há sessenta anos. Pelo ambiente e pela prática, mesmo legislativa, de vários países signatários, dizer hoje, por exemplo, que ‘todo o indivíduo tem direito à vida’ (artigo 3.º), ou que ‘a família é o elemento natural e fundamental da sociedade’ (artigo 16.º), não encontrará um entendimento tão geral e unívoco como em 1948”.
Manuel Clemente prosseguiu numa explanação que visava salientar a reflexão do Papa Bento XVI a propósito do documento sexagenário. Mas foi a ideia de Manuel Clemente, que citámos, a que, de maneira mais forte, nos interpelou. Seremos hoje menos sensíveis à importância da vida e da família humanas do que há 60 anos?
Em 1948 o mundo sofria com as feridas abertas da Segunda Guerra Mundial, feridas que exigiram, da parte da comunidade internacional, algo de verdadeiramente sólido e universal, erga omnes — para todos os homens. Algo que protegesse a humanidade da repetição dos enormes atropelos que tinha sofrido entre 1939 e 1945. Assim nasceu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, texto esboçado pelo canadiano John Peters Humphrey e, depois, amplamente discutido e aprovado na ONU.
“Infelizmente, as seis décadas que entretanto se volveram não ficaram ilesas de outros atropelos, repetindo abusos e esquecendo valores que pareciam finalmente universais, em termos de humanidade assegurada e geral”, diz também o Bispo do Porto.
A declaração universal tornou-se uma arma de protecção contra a crueldade da própria natureza humana. Em 1948 “a família humana reagia aos horrores da II Guerra Mundial, reconhecendo a sua própria unidade assente na igual dignidade de todos os homens e pondo, no centro da convivência humana, o respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos e dos povos; tratou-se de um passo decisivo no árduo e empenhado caminho da concórdia e da paz”.
Direitos fundamentais dos indivíduos e dos povos que, nesta declaração universal, assentavam nas liberdades individuais — de expressão, circulação, emancipação, manifestação — de cada pessoa acima de tudo, no direito ao desenvolvimento, à educação, à solidariedade social. A declaração universal dos Direitos do Homem foi, também, inovadora no âmbito da responsabilização colectiva da satisfação destes direitos. Contrariamente aos direitos sociais, económicos e laborais nascidos do liberalismo do século XVIII, na América e em França, e que tomaram força de lei em meados do século XIX, que responsabilizavam o Homem e o Estado, a declaração universal de 1948 responsabilizava o Homem perante o Homem.
A segunda metade do século XX, fortalecida pela declaração universal, valorizou a liberdade e o desenvolvimento dos povos de todo o mundo, o direito à auto-determinação dos povos, especialmente dos que saíram da colonização europeia.
E actualmente? Teremos esgotado o potencial social de crescimento no âmbito do aprofundamento do humanismo? Dito de outra forma: Seremos hoje menos sensíveis à importância da vida e da família humanas do que há 60 anos?
Consideramos que não. A declaração universal dos Direitos do Homem não precisa de ser reescrita, mas precisa de ser relida. Relida no sentido de reconhecermos a importância do direito ao alimento — do direito a não passar fome —, do direito ao acesso à água potável, do direito à sustentabilidade do planeta, do acesso à cultura, à educação e à informação, por exemplo.
E, ainda, retomando as palavras e a preocupação do Papa Bento XVI e do Bispo Manuel Clemente, precisamos de revalorizar o papel da família, do direito à família, enquanto estrutura basilar do ser humano como ser social. “Quem, mesmo inconscientemente, combate o instituto familiar, debilita a paz na comunidade inteira, nacional e internacional, porque enfraquece aquela que é efectivamente a principal agência de paz”, afirma o Sumo Pontífice da Igreja Católica.
Quando nos preparamos para viver o Natal e somos interpelados pelo sexagésimo aniversário de um documento — o que em maior número de línguas se encontra traduzido — não podemos deixar de o reconhecer como proposta salutar de globalização pelos valores da vida humana e da família que o povo da Terra constitui, e, “sobretudo, a antropologia que vê no homem um sujeito de direito precedente a todas as Instituições, com valores comuns a serem respeitados da parte de todos” — usando as palavras de Bento XVI.

Editorial de 17 de Dezembro de 2008