Ad aeternam rei memoriam*
A propósito do segundo aniversário da morte do Padre Abílio Simões

No próximo sábado, 7 de Fevereiro, completam-se dois anos sobre a súbita morte do Padre Abílio Duarte Simões. Para além do pároco — da Vacariça e da Mealhada —, do professor, do colaborador do Jornal da Mealhada, recordamos, com emoção, o homem — altruísta, militante, teimoso, corajoso, inquieto — e, de modo muito especial, o amigo — dedicado, generoso — cuja falta não conseguimos, ainda, superar. A falta de alguém que fez parte integrante do nosso crescimento pessoal, do crescimento do projecto, sempre inacabado, que é o Jornal da Mealhada, permite-nos, num toque mais pessoal, solicitar ao leitor a autorização para admitir que quem escreve um editorial também tem direito ao sentimentalismo e à partilha.
As exéquias fúnebres, com a participação massiva da população — crente e não crente — foram bem demonstrativas da admiração que a maior parte das pessoas tinha pelo Padre Abílio Simões. Acreditamos, até, que nem o Padre Abílio tinha a noção da quantidade de pessoas que, mesmo nem sempre concordando com ele, nutriam por si simpatia. Ciente das suas capacidades e do seu valor, não era, no entanto, um homem cuja auto-estima lhe fizesse acreditar ser tão estimado como, de facto, era. O que, certamente, mais admiração lhe traria, mesmo acreditando que nunca o admitiria, foi a homenagem que, na altura do seu funeral, lhe fizeram políticos de todos os quadrantes partidários. Alguns com quem travou acesas lutas por aquilo que considerava justo para si e para o seu rebanho. Alguma vez o Padre Abílio pensaria que aos funcionários municipais do concelho da Mealhada seria dada a dispensa do trabalho para participação no seu funeral?
A verdade é que o tempo foi passando e a vida continuou. O jornal, mesmo sem ele, foi continuando a ser editado — mesmo notando-se a diferença e a ausência — e mudou bastante, em aspectos relativamente aos quais ele próprio mostrara relutância e até oposição. As paróquias da Mealhada e da Vacariça acolheram, de braços abertos, novo pastor e, com ele, algumas mudanças, nem sempre bem aceites. Na sua escola a ausência não se terá sentido de forma tão acentuada, até porque se tinha reformado quatro meses antes, mas terá deixado, a vários putativos discípulos, a promessa de os pôr a saber latim em dezanove lições. A agricultura, o oficio a que prometera dedicar-se com mais afinco na reforma, ficou para outros, e a pós-gradução em bioética certamente que não acabou pela sua falta.
A terra continuou a girar. É certo. Mas o Padre Abílio continua entre nós. Nas últimas semanas reparámos na quantidade de pessoas — dos mais variados quadrantes e graus de formação — que evoca, ainda hoje, as palavras dele para falar sobre a língua portuguesa bem escrita e bem falada, sobre as gralhas nos jornais, sobre a pontualidade, sobre a astúcia deste ou daquele protagonista político, sobre aquilo que ele algum dia terá dito ou escrito sobre o assunto. E, inevitavelmente, a congeminação: “Se o padre Abílio aqui estivesse…” Continua, por isso, entre nós. É citado mesmo por aqueles que ele julgava não o suportarem.
E enquanto ele for lembrado estará a ser feita a sua homenagem maior, no seu testemunho e no seu exemplo. Está, no entanto, por fazer a homenagem pública, institucional, secular, que foi prometida, pelos autarcas do concelho, aos seus familiares e aos seus amigos. O reconhecimento dos poderes políticos impõe-se. Ele nunca o exigiria e até dele fugiria… mas é merecido. E quem o prometeu não pode disso afastar-se.
Merece-o por ter sido um homem positivamente polifacetado. Por ter sido um homem de demandas que considerava de interesse social, um lutador, de antes quebrar que torcer mas que sabia dar a outra face, e que sofria com os que lhe eram ingratos. Por ser, por outro lado, um homem com um sentido de humor inigualável, a ponto de se rir das suas próprias fraquezas, perante aqueles em que confiava. Por ser um homem que mudaria a rota da Terra se fosse preciso ajudar uma pessoa que dele precisasse.
Dissemos, há dois anos, que a verdadeira personalidade do padre Abílio Simões só com o tempo seria devidamente apreciada. Não nos enganámos e, provavelmente, aconteceu mais cedo do que julgávamos. Dissemos que seriam muitos os que o criticavam e que, no futuro, invocariam, positivamente, a sua memória. E assim é.
O altruísmo, a perseverança, a generosidade dos gestos, que preferia manter anónimos, o exemplo de desprendimento das compensações materiais, de dedicação aos outros fazem dele um homem de grandeza excepcional que merece ser reconhecido e elogiado. Para memória dos que não tiveram a graça de o conhecer.

29 de Março de 1992
Dia da Sagração da Igreja Paroquial da Mealhada
No dia da inauguração da sua obra maior, ao centro, com o microfone, o Padre Abílio usa da palavra para as saudações da praxe. Ao seu lado aparecem aqui figuras por quem tinha particular azia… Da esquerda para a direita temos Rui Marqueiro, presidente da Câmara Municipal da Mealhada à data, com quem teve a célebre guerra da casa paroquial. Abílio dizia que Rui faltava à palavra dada ao impedir a construção da casa paroquial ao lado da Igreja. Rui socorreu-se da sentença do Supremo Tribunal Administrativo para tirar a água do capote. Mas a casa fez-se… e Abílio passou a assinar “Pároco da Mealhada não-residente sem intenções de residir”. Nunca morou naquela casa, que construiu, e estabeleceu residência na Lameira de São Pedro.
A seguir aparece-nos o ortodoxo Bispo de Coimbra, Dom João Alves. Por quem o padre Abílio nutria pouca simpatia… ‘se me chatear muito eu…”. Raramente acabou a frase, felizmente. À direita Gilberto Madail, Governador Civil de Aveiro, alvo, inúmeras vezes, das maiores farpas que, nos artigos de opinião, o articulista Abílio alguma vez distribuiu.

*Para eterna memória
Editorial da edição de 4 de Fevereiro do Jornal da Mealhada