A judicialização da Política na Mealhada

O mandato autárquico que finda no próximo Outono foi pródigo em transformações interessantes no exercício das responsabilidades políticas municipais. Transformações que são gerais, comuns a quase todos os municípios, e transformações específicas do concelho da Mealhada.
A tomada de posse dos autarcas dos órgãos municipais — Câmara e Assembleia Municipal —, em Outubro de 2005, deu início a um período de grande conturbação política na Mealhada. A ‘Guerra do Papel Timbrado’, os gabinetes para a oposição e a tenda para atender os munícipes, as reuniões de Câmara abertas e as fechadas foram episódios que marcaram de forma muito vincada a primeira metade do mandato da Câmara da Mealhada. Foi um período de grande crispação verbal, de muita tensão entre as pessoas, de algum aproveitamento da comunicação social para a prossecução de uma estratégia política de desgaste de Cabral e da sua equipa. A estratégia resultou e alastrou-se a outros sectores da sociedade civil obrigando o presidente da Câmara a travar novos combates.
Nesta primeira fase, na Mealhada, verificou-se um esvaziamento quase completo da Assembleia Municipal enquanto espaço privilegiado para a dialéctica política, para a acção da oposição. Esta é, no entanto, uma das transformações gerais, comuns a muitos municípios, a que aludimos. A especificidade mealhadense acabou por ser o facto de as principais manifestações da oposição, a acção de confronto dialéctico, de debate, se terem transferido para a Câmara Municipal, que deixou de ter a aparência de um órgão executivo pragmático para a gestão do quotidiano para passar a apresentar-se com características parlamentaristas de debate de ideias mais gerais.
Nos meados do mandato deu-se início a uma nova tendência. A decisão final do debate político foi transferida para os tribunais. O primeiro caso de que temos memória foi a queixa dos vereadores do PSD a propósito da avaliação do imóvel da MEAGRI com a intervenção do vereador António Jorge. Apesar de não ser por nós conhecido o resultado desta queixa, outras queixas judiciais se lhe seguiram. E, nos últimos meses, a situação intensificou-se sobremaneira. Foi o caso do ‘Relatório Calhoa’, que deu origem a várias queixas, foi a queixa de Cabral sobre as declarações de Carvalheira, alegadamente proferidas num plenário do PSD, foi, agora, o caso dos inertes de Mala, levantado por Carlos Marques, e do pavimento da pista no Parque Urbano da Cidade, apresentado por Carvalheira.
São casos, pelo menos estes últimos, que passaram quase directamente da Câmara para os jornais e destes para os tribunais. Na reunião da Assembleia Municipal da passada sexta-feira — no auge dos acontecimentos do debate sobre o pavimento do Parque Urbano da Cidade, por exemplo — nem uma palavra se ouviu acerca do assunto, nem de qualquer um dos que, ultimamente, têm suscitado mais controvérsia política.
Não nos cabe ajuizar sobre as vantagens e desvantagens desta transferência da dialéctica democrática do poder local para os tribunais. Nem sequer qualificar este recurso — os poderes estão divididos para que possam cumprir funções distintas. Cabe-nos sublinhar este facto e procurar reflectir sobre ele. Uma reflexão — com os partidos, os autarcas, os académicos, com os legisladores (?) e com os eleitores — que seria um óptimo ponto de partida para o debate que se deseja esclarecedor na campanha eleitoral autárquica que se aproxima.
Estará o sistema político autárquico tão desgastado que já não permite a resolução dos conflitos que gera, naturalmente? Estar-se-á a transferir a confiança do povo, manifestada através do voto democrático, directamente dos políticos para os tribunais?
Para nós, no entanto, há uma ideia que nos parece pertinente: o actual sistema de distribuição de competências e atribuições entre a Câmara e a Assembleia Municipal está ultrapassado. O que nos obriga a sublinhar o facto de, há pelo menos seis anos, se ter mostrado como sendo necessária uma alteração profunda na legislação que regula o funcionamento dos órgãos do poder local. Uma alteração que se entende dever passar pela forma de eleição da Câmara Municipal, pela periodicidade das suas reuniões e pelas competências da Assembleia Municipal, por exemplo.

Editorial do Jornal da Mealhada de 24 de Junho 2009