Via pantanosa não pode obscurecer

O tempo que se aproxima é de um forte pendor religioso. O facto de sermos um país maioritariamente católico terá levado a que tão importante quanto a festa litúrgica da Páscoa – e são tantos os que nela se envolvem de corpo e alma, vigorosamente – seja a festa comunitária que se vive nesta altura. A Páscoa tem no seu âmago a ideia de libertação (na tradição judaica da libertação do Egipto, pela vara de Moisés, e na tradição cristã da libertação da morte, pela Ressureição de Cristo), tem, também, a ideia de salvação e de alegria pela esperança. São tudo argumentos festivos que nos devem aproximar das pessoas de quem mais gostamos, de as visitar e de lhes mostrarmos o nosso afecto, e, porque não, brindar a isso mesmo, ao sabor de umas amêndoas.
Para os crentes, o caminho até à Páscoa não é feito sem dor. O sacrifício torna, na concepção dogmática desta celebração, a alegria final mais sentida e significante. E a Igreja Católica, enquanto instituição, está a viver estes tempos de Quaresma, numa perfeita via dolorosa. A informação do número de crimes de pedofilia que terão sido perpetrados por pessoas consagradas contra crianças, muitas delas à guarda da Igreja, é abjecta e é revoltante para qualquer ser humano. A notícia deste grande conjunto de casos chega às pessoas nas vésperas da festa da Páscoa, o ponto mais alto da vivência cristã, e precisamente no Ano Sacerdotal (que Bento XVI proclamou para ser assinalado entre Junho de 2009 e Junho de 2010 para “contribuir para fomentar o empenho de renovação interior de todos os sacerdotes para um seu testemunho evangélico mais vigoroso e incisivo”). Ironias? Ou a longa manus do destino?
Qualquer espécie de justificação para estes comportamentos odiosos deve ser escusado, porque não há nada que o justifique. “Temos que dar a mão à palmatória. A Igreja também é feita de pecadores”, afirmou Dom Albino Cleto, Bispo de Coimbra, recentemente e a este propósito. Na mensagem do Papa para a Quaresma 2010, o Sumo Pontífice aborda a questão da Justiça e, num texto bastante interessante, analisa o que entende ser a diferença entre a Justiça de Deus e a Justiça dos homens. Das suas palavras não se depreende que os homens de Deus que cometem crimes estejam isentos da Justiça humana e terrena. E esse talvez tenha sido o erro que mais choca neste domínio e que não pode repetir-se: A Igreja não deve impedir que os alegados pedófilos no seu seio não sejam submetidos à justiça dos seus países.
As dificuldades e os efeitos do escândalo que os prevaricadores infligiram às crianças estão a revelar-se na própria Igreja, como se fosse uma retribuição, e até nos poderia parecer justa se toda a acção da Igreja se resumisse a estes acontecimentos. Mas não resume e é essa a ideia que não podemos deixar esquecer no domínio desta discussão e desta incriminação colectiva.
Não há registos de casos de pedofilia entre padres portugueses – o que não quer dizer que não existam –, o que nos faz garantir que não podemos tomar a árvore pela floresta (e até por isso não devem ficar incólumes os prevaricadores). A acção da Igreja no domínio da protecção social e à protecção da criança é muito grande, muito importante e não pode ser manchada por esta suspeição que se abateu sobre a instituição.
Em tempo de via-sacra, não podemos deixar que um percurso aparentemente pantanoso, como o que atravessa a Igreja Católica nestes dias, obscureça o caminho e a obra social que, em Portugal e em todo o Mundo, presta às crianças e, por elas, à humanidade.